O momento é trágico, vivemos uma guerra civil em termos de segurança, e no Rio uma metrópole sitiada pelo crime há muito tempo. E algumas vozes na mídia conclamam mais controle das fronteiras, e sempre pautam programas com reportagens especiais mostrando esta nossa vulnerabilidade.
Fato, ela existe realmente, com o nosso testemunho direto, vez que cumprimos um trabalho de segurança naquela região há muitos anos, onde vivi a experiência pessoal de fazer corpo a corpo com esta criminalidade transnacional, num fluxo de milícias de assassinos cruéis e frios, que contam com um financiamento milionário nesta indústria criminal. A extensão do nosso território e a faixa fronteiriça com a nossa vizinhança nos expõe a países que não primam pelo controle destas divisas, sequer apresentam razoável eficiência no combate ao crime dentro de seus limites, com a agravante de que dois deles estão entre os maiores produtores das duas drogas mais populares no planeta, a maconha e a cocaína.
O trânsito praticamente livre nestas áreas, é um corredor permanente do tráfico destas drogas, do contrabando e tendo como contrafluxo a receptação de riquezas roubadas em nosso país, muitas vezes em pagamento desta maldita importação. Sim, coloquei no genérico, riquezas, pois não são só nossos carros de luxo roubados que pagam a droga nas fronteiras. Caminhões, máquinas agrícolas, joias, ouro, dólares, semoventes (gado), e todo fruto de crime, as quadrilhas locais levam para este escambo bandido maldito, aliás, muito dinheiro da corrupção acaba usando este caminho também.
A nossa fronteira seca passa dos 15 mil km, o dobro da marítima, que também é extensa, o tráfico que abastece o nosso país usa a via aérea, terrestre e pessoal (com varejo de formiga, no caso das mulas que transitam diariamente com pequenos volumes colados ao corpo e/ou com bagagens embarcadas no transporte coletivo interestadual) e motorizada em grandes cargas, e até fluvial e marítima. Evidente que este controle é muito difícil, mesmo se deslocássemos toda a força policial dos Estados fronteiriços com tais países, com o considerável apoio da Polícia Federal e mesmo do Exército.
Porque a droga é o ouro que financia o crime como nenhum outro valor, e a fonte primária dos recursos desta rede de criminalidade, e é subsidiada pelo consumo rico, abastado, endinheirado e que despende fortunas para ter o prazer com a cocaína, a maconha e derivados. O dinheiro que entra é líquido, em espécie, ninguém emite cheque nesta compra, e ele é farto, diuturno e inesgotável. A moeda que sobe diariamente os morros cariocas, infelizmente de forma ilícita e exclusiva para as mãos do tráfico, talvez seja maior que a que entra pela caixa do tesouro do próprio município, na forma de impostos, e sobrevive a todas as crises e sai exatamente dos bolsos mais afortunados que frequentam as praias mais famosas do país — não necessariamente os locais, mas que, pelo menos, transitam ou fazem turismo por ali.
Os traficantes cariocas não são atacadistas, a droga que ali chega abastece a grande cidade e entorno, mesmo porque não teria sentido, sequer racionalidade logística, ela chegar e sair dali para uma venda distante, que demandaria riscos e custos, numa clara contramão dos negócios do crime. A fortuna deste comércio é varejista, direta ao consumo e exibe uma constância e liquidez como em nenhuma outra atividade mercantil.
Então, fica evidente que o consumidor é o grande financiador do crime ali, ele paga para que se comprem fuzis automáticos, ARs 15, granadas, coletes sofisticados, metralhadoras ponto 30, munição farta (que muitas vezes nem precisam ser adquirida na fronteira, como se verifica no episódio da morte da vereadora), e é patrono de toda a corrupção, que fomenta o aparecimento de milícias criminosas, que corrói e apodrece uma banda das instituições públicas, e não somente as repressoras, e banca também para que se mantenha um poder paralelo e estruturado do crime, que garante a segurança do seu fornecedor, seu estabelecimento e sua proximidade, e paga para que se mate quem se coloca no caminho do seu consumo — o consumidor não quer perder seu fornecimento cômodo jamais.
Ora, ou vamos colocar na pauta das discussões o crime complexo que criou raízes culturais ali, e vamos responsabilizar o seu patrocínio como deve ser, ou vamos continuar esta hipocrisia de enxergar na legalização das drogas uma saída eficiente e legítima. Isto equivale a conceder um prêmio ao consumidor, este irresponsável, ou um alvará para que se legalize a mais pura tara hedonista e se absolva quem despreza os limites da vida em sociedade. E com a consequência evidente de que se irá contornar o crime do fornecedor, descriminalizar suas ações, absolver toda sua história criminosa e desumana neste comércio vil, vez que com o esvaziamento dos seus ganhos, mas não da sua disposição criminosa e do lucro fácil, fatalmente fará ele migrar para outra forma de mercado com a violência contra a Lei, pois é esta a sua expertise e vocação — os barões do tráfico são desta cepa de indivíduos que sempre acompanharam a história da humanidade (e com registros bíblicos), e que sonham com o ócio de uma vida abastada, colhendo onde nunca plantaram.
Nos morros cariocas não existem apenas eles, aliás, são a minoria que expropriam a paz, a dignidade e a oportunidade da maioria honesta e operosa, que mesmo reféns e escudos deste império do crime, insistem na vida ordeira, laboriosa e construtiva. E são a multidão, testemunha viva de que a carência social não induz e justifica o caminho da violência, do crime e da desumanidade.