Um blog pessoal para compartilhar ideias com amigos e familiares. Todos os posts de autoria exclusiva do autor, e eventuais citações de terceiros com nomes dos respectivos autores e/ou textos destes em destaque. PauloCCSaraceni

AS MINHAS VÁRIAS SEGUNDAS CHANCES

Recebi várias segundas chances na vida, a maior delas ainda desfruto com imensa gratidão no coração,  é sobre minha saúde,  tendo vencido o câncer, descoberto em plena pandemia(uma luta contínua e de seguidas batalhas),  sobrevivi a 2 cirurgias relacionadas à doença de tantos estigmas mas que revelou o melhor da minha força, o melhor de mim.

Mas tive outras grandes chances. 

Eu mal iniciava minha atividade como policial e chefiava um grupo de bloqueio(barreira em estradas) na fronteira,  a busca era por contrabando de armas, carros roubados, drogas etc. Vinte e poucos anos, com treinamento precário em uma academia ainda muito incipiente, armas com munições contadas e viaturas velhas. Ah, mas com a coragem dos muito moços, a valentia dos "imortais" idealistas que se supõem ungidos por alguma força superior,  crentes que sempre apostam nas mãos divinas. 

As estradas vicinais de terra, preferidas pelo crime avisavam desde longe com uma cortina de poeira, mesmo nas noites escuras daquele oeste do Brasil, nas fronteiras violentas com a Bolívia e Paraguai, quando vinha um veículo.

A evasão do crime conhece a rota e se movem em alta velocidade e em carros potentes nas madrugadas e, mesmo para àquela época, sempre tiveram os melhores equipamentos e armas.

O crime sempre teve mais estrutura e mesmo a própria surpresa em relação às forças legais - vinham em mais de um veículo,  geralmente batedores, e com um paiol inesgotável de armas e munições. 

O bloqueio, por estratégia, se faz em duas turmas,  a da abordagem propriamente e outra camuflada, preliminar,  que fecha a via depois da parada dos suspeitos,  e fica uns 50 metros, entricheiradas e veladas nas matas laterais da estrada, e impede a retro fuga. Abordamos uma camioneta com carga oculta por lona.  Me adiantei e à frente da equipe de operações (formada por agentes civis, federais e militares) com meu precário 38 , 5 tiros, para junto da janela do condutor exigir a inspeção do veículo quando um grito por sobre meu ombro, que ecoou grave e ameaçador naquela noite tensa, quase  desesperado, e que calou todos os ruídos e deixou evidente que o mais experiente agente do grupo( saudoso oficial, grande amigo,  do nosso grupo de operações) , engatilhava para atirar: 

- SE ALGUÉM SE COÇAR AÍ DENTRO TODO MUNDO SENTA O DEDO AQUI!

4 meliantes, com capivaras a perder de vista(os antecedentes puxados depois pelo rádio registravam dezenas de mandados de prisão), dois na frente com armas curtas empunhadas e com dois na parte de trás da cabine dupla que mantinham 2 submetralhadoras 9mm empunhadas entre as pernas, ficaram estáticos e sem reação. Mesmo porque  o retrovisor da D10 já denunciava que parte da equipe camuflada já ocupava a estrada e enquadrava qualquer reação na retaguarda dos traficantes. 

Eles queriam a resistência, mas ladrão também tem medo de morrer, e é o mais covarde dos medos porque só escolhem o confronto com absoluta superioridade de forças.

Se renderam, e coube a mim a primeira revista no condutor, que trazia entre as pernas uma Glock carregada e engatilhada numa das mãos. 

Bem mais tarde, quase amanhecendo naquela pedagógica noite, após o interrogatório exaustivo que ainda me cumpria fazer, num desabafo raivoso e ameaçador, ele me fitou com a ironia típica dos bandidos e arrematou: - DOUTOR, ACENDE UMA VELA PRO TEU SAMANGO ASPIRINA(policial militar, aspirante a oficial),   ELE ME ENQUADROU  QUANDO NÓIS JÁ IA TE BOTAR UMA AZEITONA E TE MANDAR PRO DORMITÓRIO. 

Uma das mais sérias lições na atividade policial, a abordagem é o momento mais crítico onde ocorrem grande parte das resistências e das fatalidades para o agente.

Foi meu batismo operacional,  depois relato outros em que nem sempre o desfecho foi tão negociado,  na moral, e alguns com baixas frustrantes do lado de quem trabalhava para a Lei.

Paulo C C Saraceni 

Boa noite. CG 29.11.22

OBS: A carga era de farinha(pó) pura e erva(diamba, fumo),  cerca de 100 kg

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