Um blog pessoal para compartilhar ideias com amigos e familiares. Todos os posts de autoria exclusiva do autor, e eventuais citações de terceiros com nomes dos respectivos autores e/ou textos destes em destaque. PauloCCSaraceni

EU PRATICO A SAUDADES


 

A HONESTIDADE DA URNA


 

INSTINTO


FILOSOFIA ENGARRAFADA


 

O DIA É DO CORPO, A NOITE DA ALMA.

Se um desejo pudesse voar, e com as garras soberanas pudesse tomar o que quer, mas é uma ave condenada a ficar no chão. 

Os desejos são feitos de incompletudes, um tiro na nossa paz, um desafio para a nossa ingratidão — Viver deveria bastar!

Mas a noite sempre vem sem um pedaço dos desejos, e o corpo não quer dormir e quer sonhar.

A noite sempre foi uma fuga do dia, o dia é real demais,  é do corpo,  a noite é da alma. 

Sinto este transe quando tomo meu primeiro drink noturno,  na minha quase soturna sacada, e aí vêm os primeiros acordes de um trompete, do meu Spotify, e meu coração sorri.

Então começo crer que tudo é uma felicidade. 

E Campo Grande que oferece suas ruas e prédios calados e silenciosos, quase tristes,  canta num mar de luzes.

MORREU DE SOLIDÃO

Não havia nenhuma entrada aberta, nem porta ou janela, um barraco de madeira que deixava uma pequeníssima fresta onde se via um pé sobre um chinelo havaianas. Antes de arrombar, arrolei duas testemunhas para um auto circunstanciado de rompimento da fechadura da porta, já fazendo os apontamentos das características do imóvel e da presença de um corpo humano que não apresentava sinais de vida. Pelas finas frestas da parede de tábuas, daquelas ripas que fazem a junção das tábuas maiores, um mosaico em intermitentes flashes de visão e vi que se tratava de um homem, calças jeans, camiseta, sangue na calça, um cinto de couro cru, sangue na camiseta, sentado sobre a própria poça de sangue na tarimba rústica de pau lavrado, que ainda estava feita com lençóis brancos, evidência de que não dormiu o sono da noite. Só um pé não calçava mas repousava sobre o chinelos.
Arrombei a porta, com ajuda dos agentes, do perito e do escrivão, só aí pude ver o rosto do homem, ou quase isto, porque entre os dois olhos havia um grande buraco com as bordas negras de chamuscamento, e o sangue encharcava o cabelo e formava quase um capacete vermelho na sua cabeça desfigurada. Tinha, apesar, os olhos abertos e fixos no nada, mas fitavam diretos em quem entrava. Sentado naquela tarimba, o tronco já havia se deslocado e se inclinava para um dos lados, pela gravidade, a cabeça repousava na parede de madeira oposta à entrada, onde se encostava a sua cama, assentado na poça do próprio sangue. Aquele pé, que diferente do outro, não calçava mas repousava sobre o chinelo, fora o pé do disparo fatal.
35 a 40 anos, mas alguém que o tempo certamente havia imposto grandes experiências, o seu olhar com a esclera bem manchada de vermelho, e os seus pés queimados e rachados dos que trabalham pesado e não se calçam bem. No meio das pernas, com a coronha apoiada no chão, e o cano repousando no seu peito, uma cartucheira 28, mocha, que como um pequeno vulcão encanado espalhara sua massa encefálica pela parede às suas costas e depois em parte das telhas sem forro.
O bilhete, ou carta de despedida, último testemunho de quem se retira da vida,  com uma caligrafia oscilante e impaciente, é também um testamento, um alvará de absolvição das culpas que sempre podem pairar sobre si e os que ficam.
Antes de pegar as pedras, em vista de relato tão triste e chocante, você, ora leitor, que sempre está a postos para julgamentos, atente. Aguarde minhas razões. Isto está acontecendo aos milhares pelo país e pelo mundo, neste exato momento.
Foi uma das inúmeras ocorrências de suicídio que atendi, em todas as jurisdições porque passei, vez que toda morte violenta demanda uma sindicância pelo Delegado de Polícia. Mas esta foi emblemática. A aparência dura e forte, de quem não recusara os embates mais pesados com a vida, de natureza simples e rústica, vivendo em um barraco de um armazém da periferia onde cumpria a missão de vigia, por um salário de sobrevivência, acabara se entregando. Apurei depois, com oitiva de vizinhos e conhecidos, e perícia, que não consumia drogas, sequer fumava, e vivia quase isolado, sem amigos e longe da família.
Ao cumprir o protocolo de levantamento do local da morte, revistamos seus bolsos, haviam ali outros bilhetes, quase uma dezena, e a caligrafia era a sua em todos eles, e o desespero também, um deles me chamou a atenção onde ele se despedia com um lamento tão sincero, profundo de tão direto e simples, que tentarei lembrar sem correções: — "Meo Deu, um cariu de uma muler, um brasso."
Morreu de solidão, aquilo que os mais informados chamam de depressão, uma epidemia que chegou ao lumpesinato, e mata sem misericórdia, com as próprias mãos.
Perdi amigos para esta doença, outros tantos a venceram, mas muitos vivem sob a espreita permanente dela, por isto não subestime este sofrimento se o vir, se o perceber em quem você pode ajudar, talvez com um abraço, apenas.
O afeto,  a proximidade com o próximo, esta redundância que é um clamor de toda alma, a amizade e o carinho são remédios potentes, e têm efeito terapêutico até para quem os oferece. 
E os tempos de terror que a mídia e muitos  políticos engajados em métodos pragmáticos, mas inconsequentes,  estão impondo ao mundo, a pretexto de salvar vidas, está gestando uma terrível tragédia.  De uma geração desestimulada da liberdade,  contida na alegria de viver, crianças distantes das outras, das escolas, dos parques,  das ruas e das brincadeiras. Mães vendo seus filhos se acovardarem pelo pânico, fragilizados nas suas defesas,  gessados nas suas vontades,  temendo descobrir a vida. Obesos,  inertes e reféns das TVs que desfilam mortos como quem conta um placar escatológico de um jogo obcecado pela tragédia.
Estaremos todos muito doentes, ao final desta cultura do medo,  contagiados pela crença que o isolamento do semelhante é a cura, estigmatizando os vizinhos, os amigos, os familiares,  nossos amores, como o perigo e o grande risco das nossas vidas. Isto se prenuncia triste e se continuar vai mudar as pessoas, muito, mas não para melhor como pensam e anunciam muitos. 
Nós elegemos o caminho egoísta da separação,  da distância,  da individualidade, da desempatia com toda a vida que não seja a nossa própria. Miseráveis,  solitários e robotizados numa falsa determinação de sobrevivência,  onde estaremos matando todas as virtudes humanas, porque o que nos confere esta natureza é a percepção da necessidade de coexistir, de solidariedade e do bem comum.
O mundo já tentou este caminho, segregou os leprosos, os tuberculosos, os sifilíticos e, recentemente,  os aidéticos, mas então muitas vozes que deram coro ao mundo fizeram despertar que era um trajeto de involução humana.
E agora? O que fazem  parte dos políticos,  da polícia, da justiça, das forças institucionais do Estado, a imprensa, à serviço desta macabra e ineficiente ideia?
Se calam.
Os pobres empobrecerão mais, os ricos se protegerão mais, os egoístas mais se reforçarão nas suas convicções e nosso legado será o do pavor de viver, de abraçar, de amar e de conviver. E não me venham com a cantilena que é provisório, que é passageiro e emergencial, a humanidade não pode encontrar saída na covardia, na desesperança e na indiferença com o seu semelhante.
Anunciar que querem salvar, sob o falso mantra do "quem ama protege",  na língua dos anjos e dos homens, soa como o metal mais frio, o címbalo que retine, não como amor fraterno, mesmo distribuindo as bolsas e mantimentos como caridade compensatória da autoestima, de uma enganosa expiação falsa da consciência, compensatória de um egoísmo servil à própria sobrevivência.
Subjugados na dependência, na dignidade, na honra e na liberdade, os teus semelhantes mais fracos jamais vão se recuperar. As medidas de assepsia, lavar as mãos,  o uso racional de máscaras,  o distanciamento de segurança  estão no lugar devido, mas o instinto exacerbado de sobrevivência não é apenas covardia, é desumanidade. 
Infelizmente a humanidade não deu certo.