Um blog pessoal para compartilhar ideias com amigos e familiares. Todos os posts de autoria exclusiva do autor, e eventuais citações de terceiros com nomes dos respectivos autores e/ou textos destes em destaque. PauloCCSaraceni

AMICÃO


Resisti, mas minha filha venceu. Seria, então, um pequeno cão, e temos agora uma imperadora no apartamento. Aisha é dona de tudo, e de todos, ela domina tudo, ela lê nossos gestos e sentimentos.
Ante a ansiedade de alguém ela se posta aos pés e contempla, procurando pacificar o espírito preocupado, e na tristeza é tão solidária a ponto de incorporar tal estado.
No seu dia a dia corre, late, visita todos os cômodosinspeciona cada cama e por fim reivindica as apresentações das visitas. Não que queira fazer sala, apenas exige que lhe peçam autorização de entrada.
Nada pode lhe escapar na rotina da casa, cuida de tudo, e literalmente mete o nariz (ops, focinho) em tudo.
Jamais iria alterar minha indiferença ante tão minúscula centelha biológica, pensei quando de sua chegada. A vida seguiria, toleraria este capricho da caçula (que me fulmina com os olhos quando a chamo de bebê), mas determinaria espaço restrito para a presença deste semovente insignificante.
Hoje, constrangido, me pego conversando com ela, atendendo às suas brincadeiras, procurando por sua presença a cada retorno e me preocupando com seu bem estar.
Volto pra casa já antevendo a saudação mais eloquente dentre todas, o frenesi de rabo e lambidas, e um olhar de eterna felicidade.
Ela tem lugar cativo nas nossas viagens, visitou alguns estados do país, e já se banhou inclusive em mares badalados. 
Confesso que via, e censurava, este comportamento de donos com seus bichos como excentricidade, como boiolice mesmo.
Hoje, tenho a certeza que é ela que me leva pra passear, e o cativo sou eu.

DESPEDIDA (AO MEU PAI)

Primeira manhã sem teus passos.
Não os escuto mais. Nem no arrastar em que se tornaram no seu lento apagar.
Há a música da sua ausência no ar, toca a minha saudade, plasma imagens do teu rosto, das tuas mãos de tantos gestos.
Eu as vi, as suas mãos, e as toquei, suas mãos, quando já eram frias, como nunca foram.
Doeu em mim senti-las assim pela última vez, resignadas, indiferentes e conformadas.
Enquadrei o teu sereno rosto na película de minha alma, mas me faltaram os teus olhos, que já não se abriam, eles que nunca se fecharam ante o peso do meu olhar, e que foram sempre vigilantes, solícitos, na minha presença.
Mesmo nestes últimos dias, com o pouco brilho das últimas luzes.
Imaginei teu silêncio solitário nessa sua última escura e fria cama. Doeu-me novamente.
Como pode tanta luz se apagar, tanto livro se fechar, tanta música emudecer, tanto vazio invadir nossas vidas com a tua ausência?
Eu me despedi das flores sobre a terra que te abraçou, virei-me, encarei o horizonte e entrei jornada adentro na infinita saudade.
Registro a tristeza da despedida vez que não vejo qualquer graça, otimismo ou sentido nesse triste ato, nesta arrematada dor, nesse epílogo cruel.
Falarei da felicidade da tua história mais adiante, quando a dor, adormecida, permitir. Então prestarei as homenagens, rirei das tuas repetidas piadas, da tua permanente troça com a vida, das tuas intermináveis prosas autobiográficas recitadas à mesa do almoço. Ceia que cultivava em família sempre num alegre e inesquecível ritual.
Agora só sei me despedir. E a tristeza é a certeza desta hora, destes dias.
Virão os anos, e jamais o esquecimento. Antes, o conforto de ter retido em mim as grandes lembranças de uma convivência com alma tão amiga.
Quem sabe possa eu reencontrá-la.
Vou confiar este desejo na conta e na fé de todas as crenças.
Em Deus.