O pantanal acordou com a água batendo ritmada nos barrancos,
em pequenas ondas musicais, num chá-chá-chá narcótico;
Bebi desta manhã toda, andei-voei ao horizonte alado na brisa do mar doce, e
fui-me na planície tropicando nos matos, nos arranhagatos, nos caminhos de
pacas, pisando em caimans e sob o vento das asas das garças e de todo o ninhal despertado ;
Era um-aqui-um-ali piu de passarinho me achando e me
chamando e logo estava enfiado no meio do chaco, sob telhas de folhas, macacos
e cipós;
Fiz minha aventura diária que nunca é igual, abrindo os
peitos das águas, dos corixos, das frutas caídas e dos pelos de bichos;
Cheiro bom de jenipapo podre, de bugio molhado, de água
parada que afoga todo o pensamento e devolve vida cru;
Bom tabaco este queimar de cheiros confusos das mil ervas de
mato;
Ópio da terra, do cio de plantas, dos peixes e de todo mato-em-tudo;
Gosto desta sem Lei, desta anarquia de cores e fumos, gostos
e sopros, que orvalham no meu suor, na minha caminhada sem rumo;
Eu que vim do cimento e das pedras da pequena cidade, terna
Guararapes, e que desfrutava de um rio quase morto, do Frutal malcheiroso
apodrecido das mortes de vacas, matadouro, conhecia pouco das verdadeiras
selvas;
Comprei minha bota, minha passagem na Noroeste do Brasil,
NOB, dormi naqueles trilhos lentos que cruzaram estes novos campos, ouvindo seus ferros musicais, e pus-me agarrado
ao machete da aventura — atravessei a ponte do Rio Paraná;
Entrei por Três Lagoas, passei por Ribas, atravessei Campo
Grande e desembarquei em Aquidauana, descobri Bonito do Campo dos Índios,
Nhecolândia , onde fui batizado no Tereré e mastiguei minhas primeiras
guaviras;
E eis me aqui, eis me ali, no cimo daquele morro seco da
vazante, no prado aguado das taboas, nas botas pesadas do rio pescado.
Horizonte de baías, de água espalhada nos campos, das raízes
ensopadas das bocaiuvas, dos ipês floridos, dos ninhos dos jaburus, das corridas
musicais das seriemas;
Nunca vou te deixar,
Nunca vou te deixar,
Nunca te vou despertar nos meus sonhos.
* Meu especial agradecimento a Manoel de Barros, saudoso
passarinho mais cantador destes lindos brejos, com quem aprendi esta língua das
águas, de folhas caídas, de bico de maritaca, de rastro de barriga de cobra-sapo...assim
me meti no verbo deste pântano de sonhos.