Indiferente aos movimentos dos carros,
talvez sonhasse.
Vira-lata de longa
geração, a rua sempre foi sua casa.
Tímido, pedia licença
para viver, então nem latia, sabia que nenhum território era seu, apenas
compartilhava com o resto do mundo.
Carente, recebia cada
olhar mais atento com um alegre abanar de rabo, agradecia feliz, solícito
mesmo, qualquer atenção.
Bateu-lhe o frio, o
vento e a chuva, que lhe colou os pelos gelados no corpo.
Veio-lhe então uma
tosse feia, persistente, para maior repulsa das pessoas.
Parou um carro, se
assustou, fez menção de fugir, lá vinham as rotineiras pedradas ou chutes, ou
bater de pés, afinal o jardim central da avenida, e seus abrigos, era
disputado nos fins de semana.
Mas a voz chamou, mesmo
sem nome sabia que era por ele.
Tremia, mas estava
disposto a qualquer risco por uma amizade, e embarcou.
A viagem na companhia de
dois adultos e duas crianças, sob um medo sufocante mas cheia de
esperança, e que lhe aquecia o corpo como nunca, terminou diante de um farto
prato de ração.
Comeu como
se disputasse a comida nas ruas.
As mãos percorreram seus
pelos como nunca, de colo em colo ouviu os grunhidos humanos de ternura,
reconhecia este tom, este zelo dos donos com seus bichos, agora era um destes
bem- aventurados.
Tinha um lar, um pano
quente e seco de chão, e um quintal todo seu para defender, agora latia de
felicidade.
Um grande estouro,
gritos, o sol quente já lhe queima uma das patas, a sombra do ipê já se movera,
e as pessoas discutem em torno dos seus carros.
Uma colisão
de veículos lhe roubou o sonho, acordara.
(Aos que como eu, após insistência da minha caçula, possuem e aprenderam
a amar estes pequenos animais, grandes amigos — da nossa série,
confessadamente pretensiosa, Licenças de Um Atrevido a Poeta do
Cotidiano).