Um blog pessoal para compartilhar ideias com amigos e familiares. Todos os posts de autoria exclusiva do autor, e eventuais citações de terceiros com nomes dos respectivos autores e/ou textos destes em destaque. PauloCCSaraceni

OS VIRA-LATAS TAMBÉM SONHAM

                                     

O pequeno cão dormia à sombra do ipê roxo.
Indiferente aos movimentos dos carros, talvez sonhasse.
Vira-lata de longa geração, a rua sempre foi sua casa.
Tímido, pedia licença para viver, então nem latia, sabia que nenhum território era seu, apenas compartilhava com o resto do mundo.
Carente, recebia cada olhar mais atento com um alegre abanar de rabo, agradecia feliz, solícito mesmo, qualquer atenção.
Bateu-lhe o frio, o vento e a chuva, que lhe colou os pelos gelados no corpo.
Veio-lhe então uma tosse feia, persistente, para maior repulsa das pessoas.
Parou um carro, se assustou, fez menção de fugir, lá vinham as rotineiras pedradas ou chutes, ou bater de pés, afinal o jardim central da avenida, e seus abrigos, era disputado nos fins de semana.
Mas a voz chamou, mesmo sem nome sabia que era por ele.
Tremia, mas estava disposto a qualquer risco por uma amizade, e embarcou.
A viagem na companhia de dois adultos e duas crianças, sob um medo sufocante mas cheia de esperança, e que lhe aquecia o corpo como nunca, terminou diante de um farto prato de ração.
Comeu como se disputasse a comida nas ruas.
As mãos percorreram seus pelos como nunca, de colo em colo ouviu os grunhidos humanos de ternura, reconhecia este tom, este zelo dos donos com seus bichos, agora era um destes bem- aventurados.
Tinha um lar, um pano quente e seco de chão, e um quintal todo seu para defender, agora latia de felicidade.
Um grande estouro, gritos, o sol quente já lhe queima uma das patas, a sombra do ipê já se movera, e as pessoas discutem em torno dos seus carros.
Uma colisão de veículos lhe roubou o sonho, acordara.
(Aos que como eu, após insistência da minha caçula, possuem e aprenderam a amar estes pequenos animais, grandes amigos — da nossa série, confessadamente pretensiosa, Licenças de Um Atrevido a Poeta do Cotidiano).